domingo, 4 de maio de 2014








Salvação. Redenção. Progresso material e espiritual. Evolução cultural. Uma vida de abundância. Sem sofrimentos. Plenamente racional. Lógica. Sem sustos. Sem atropelos. Basta que trabalhemos. Que sigamos o que é lógico e sensato. Como um simples dever de casa.


É como somar dois mais dois. É como resolver uma equação, bem simples e sem muito esforço. É como ligar à lápis numa folhinha em branco, com um simples riscado, o ponto A ao ponto B. Não há como a vida ser ruim, pois tudo passa a ganhar sentido, a ter um sabor especial, pois que passamos a viver e experimentar a uma prática assentada na verdade, na pureza das idéias e valores. 


Trabalhar, trabalhar e trabalhar. Basta que façamos isso diuturnamente. Não, mas é preciso algo mais: é preciso não dar ouvidos ao pensamento contrário que insiste em demonstrar que a realidade da vida e do mundo é bem distinta. É preciso praticar o que acreditamos sim, mas, muito importante também – crucial, eu diria: é acreditar cegamente no que dizemos acreditar. Mais do que acreditar. É preciso crer. Sem piscar, sem hesitações, sem respirar até. 

É proibido duvidar até em sonho. É preciso não dar brecha ao iníquo. Até porque, que las hay, las hay !


E como estamos falando de fé. E fé não se discute, é preciso se nutrir todo santo dia da verdadeira palavra. E acreditar nela de maneira cega. 


Há crise, há dificuldades e calamidades sociais e econômicas inauditas? A solução é mais mercado, mais mercado livre, mais mercado desregulamentado. “Mas, ousa questionar uma pobre alma sem fé e distante da Verdade, o que comprova a validade de tais afirmações?”. O profeta da palavra nem perde tempo em responder e continua sua pregação:


Há falta de crescimento (do capital e das fortunas das burguesias financeira e industrial, diga-se de passagem), um estado eterno de estagnação, sem nenhum horizonte de melhoria? É preciso mais iniciativa privada, mais gerenciamento empresarial na condução da política econômica, menos gastança com política pública. Numa palavra: mais racionalidade e menos irracionalidade na hora de digitar na planilha a ser enviada ao congresso (a Casa da política, dos interesses mesquinhos de grupos de interesse, onde o povo faz ouvir e ressoar alguns de seus uivos e sussurros, em síntese: o lugar dessa praga, desse mal chamado Democracia...). O profeta já irritado com possíveis questionamentos e indagações maliciosas, desenha numa tábua: vejam ignaros sem fé: dinheiro para mercado = Racional, já Dinheiro para Sociedade = Irracional.


Mas não é que um descrente encapetado tem peito para retorquir: “Mas há exemplos e situações concretas que demonstram a viabilidades disso que proferes, oh!, oráculo que tudo sabe e vê?”


E o já colérico profeta sentencia: você quer provas, quer gráficos, dados estatísticos, análises concretas, devidamente embasadas, estudos sérios, razoavelmente equilibrados, desapaixonados? Lembrem-se das palavras reveladas nas escrituras: há coisas que os homens nunca irão saber. E não devem e não podem saber. Nesse momento o que seu espírito e sua mente menos precisam são números, provas e contra-provas, registros estatísticos, questões, problemas, teses e hipóteses. Diga um não rotundo a tudo isso. Repreenda o que não pertence ao propósito Dele. Repreenda as astúcias do inimigo (de bafo estatal e popular). Deixe disso, entregue a tua vida à Mão Invisível, que do resto Ela Cuidará.


O que importa é que você saiba, basta que você creia, pratique e medite incessantemente as seguintes fórmulas espirituais: para todo mal existente, para toda sorte de sortilégios, de aflições que angustiam a tudo e a todos, não há outro remédio que mais desregulamentação, mais mercado livre, mais mercadorização das relações sociais, menos estado, menos gasto com saúde e educação, mais globalização, mais privatização.


Mas do que se trata tudo isso: religião? Fundamentalismo? Crendice barata ou popular? Fanatismo fora de época ou de lugar? Radicalismo dogmático?


Nada disso: é o conjunto de alguns dos principais postulados do argumento científico liberal. Ciência pura!




Leonardo Soares dos Santos é historiador e professor da UFF.

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