É
deveras impressionante a forma como Marco Antonio Villa tenta
reconstruir a memória do Golpe de 1964. Não satisfeito em desprezar os
fatos concretos - tanto os de conhecimento público a décadas como os que
têm sido revelados a pouco menos tempo - o contador de estórias (de
qualidade duvidosa) agora tenta esbofetear qualquer rigor científico que
a ciência histórica possa ter.
No seu afã de provar que o Golpe Militar de 64 foi democrático, patriótico, cristão e revolucionário, o memorialista da Revolução Redentora tenta atacar a figura pessoal de João Goulart. Ele - o estoriador - vem recorrentemente nas suas várias e lamentáveis manifestações investindo na tese de que Jango era o verdadeiro golpista (ele teria mandado cercar o Congresso), era corrupto (recebia dinheiro de empreiteira) e que era um sujeito desprovido de caráter.
Tudo isso justificaria a eclosão de um Golpe brutal (que Villa afirma não ter sido tão brutal assim) em 64 (que segundo o contador de lorota, só começou em 68) e que duraria até 85 (até 79, corrige imediatamente o memorialista imparcial).
Em que tipo de mente, o caráter e os defeitos de um governante podem legitimar e justificar o sequestro do Estado de Direito num país? Em qualquer país decente que se imagine, tal postura intelectual, enormemente deprimente e desqualificada, seria devidamente rechaçada. Mas aqui neste país não: ela ganha ares de teoria de capa da Science.
A última estripulia de Villa é o mantra de que Jango, além de toda a incompetência, era um sujeito sem nenhuma estatura moral. E para tanto Villa se fundamenta em declarações de Celso Furtado, dadas em abril de 1999 (terá sido no dia 1°?), no qual teria afirmado que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”.
O
curioso é constatarmos a fonte de tal achado de Villa. A entrevista de
Furtado, a chave de sua revolução interpretativa sobre o Golpe - e que
prova que foi na verdade uma Revolução - se baseia numa entrevista dada a
Revista masculina de nome Playboy. Isso mesmo meus caros, para provar a
sua horripilante interpretação Villa apela para uma revista
pornográfica. E com ela sempre debaixo do braço o Villa se volta com
enorme truculência intelectual para contestar qualquer afirmação de que o
Golpe de 64 instaurou um período de trevas para a democracia
representativa. O desespero do historiador em positivar a "Revolução" de
64 é tanta, que ele não pensa duas vezes em unir História e Saliência.
A grande fonte das descobertas de Marco Villa. A profunda Playboy de abril de 99. |
Não
se quer aqui de maneira alguma desacreditar o depoimento de Celso, mas o
que mais irrita na imparcialidade de Villa é o fato dele ignorar outros
aspectos de sua entrevista. Villa só extrai aquilo que supostamente
confirme a sua crença de que o Golpe tenha sido verdadeiramente
revolucionário e redentor (ou um contra-golpe). Ele passa por cima de
diversas outras denúncias de Celso. Fixando-se apenas naquele trecho,
isolando-o de todo um contexto, parece até que Celso tenha tido a mesma
concepção (torpe e nefasta) de Villa: de que o Golpe nos livrou de um
presidente nefasto e torpe.
Não,
não foi bem assim sr. Villa! E o senhor sabe disso. Basta ler direito e
de maneira minimamente honesta as palavras de Celso.
Ora,
o que terá impedido Villa de prestar atenção nas outras partes da
entrevista? É bem provável que uma revista como a Playboy leve a isso.
Estou apenas supondo - que fique claro! - que ele tenha de distraído com
outra seções da revista masculina. O que é perfeitamente natural. É
como se Villa se trancasse num banheiro com a revistinha e não quisesse
ouvir mais ninguém.
Caros,
vejamos, não é uma tarefa fácil manter a concentração, mesmo que numa
análise séria, rigorosa, criteriosa e desapaixonada da entrevista de
Celso Furtado na Playboy de abril de 1999. Pois mal abrimos e isso assim
se nos abre:
O conteúdo da entrevista de Celso Furtado parece fascinar a todos. |
A
despeito de tantas distrações - bobas, é claro, nada que afete a missão
de um historiador comprometido com a verdade e com o rigor do ofício do
Bloch - é indisfarçável o gozo do historiador em destruir com a imagem
democrática de Jango. E usa Celso como principal arma.
Mas
se Villa fosse mais cuidadoso ele poderia se basear em outros
depoimentos do mesmo personagem. Vejamos o que ele diz numa entrevista
dada ao Estado de São Paulo (31/03/2004), mais ou menos na mesma época. Uma visão mais equilibrada se nos apresenta.
Perguntado sobre os responsáveis pelo Golpe, Celso segue imputando grande responsabilidade a Jango, mas......
Tenho a impressão que a responsabilidade do golpe cabe tanto ao Jango
quanto ao Lacerda. A minha impressão é que o problema da sucessão do
Jango seria muito difícil e complicado, no caso de vitória do Lacerda.
João Goulart teria que enfrentar um guerreiro nato que só crescia e se
agigantava brigando.
Sobre a tal ameaça do fantasma do Comunismo (que o historiador segue dando tanto crédito) Celso é taxativo:
No Brasil, os militares acreditaram no espantalho e acabaram sendo
enganados, como também foram enganados os que acreditaram que os
militares só permaneceriam dois anos no poder, antes de devolvê-lo aos
civis. Esse foi o caso do grupo mineiro, do Magalhães Pinto e outros,
todos a espera da tradicional acomodação que acabou não acontecendo.
Mas disso Villa não quer saber. Ele só quer saber de se ocupar da Playboy - isto é, da entrevista de Celso na mesma. Pronunciamentos ponderados como esse de Celso, analisando vários ângulos e possibilidades de uma mesma questão, cogitando diferentes hipóteses, ou seja, tentando perceber a complexidade de um processo histórico, não, isso não interessa a Villa. O que interessa é mostrar a fraqueza do Jango.
Ou seria uma questão de distração? Mas o que teria distraído tanto ao Villa?
Débora Stroligo também se mostra surpresa com as revelações de Furtado. |
E, cá pra nós, passados tantos anos, e de tanto Villa ocupar uma mão com a Playboy de abril de 99 e, com a outra mão, com seus cinco dedos, escrever tanto texto gozado contra Jango, alguém aí teria coragem de pedir essa revista emprestada a ele?
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