quinta-feira, 17 de abril de 2014







Antes de começar esse texto, recomendo a quem tem o estômago muito frágil, a tentar poupar o seu organismo. Trata-se de uma reação ao texto do estoriador Marco Antonio Villa (“Gigolôs da memória”, In: O Globo, 8/4/2014) -  e isso já diz muito. Pois terei que citar alguns argumentos, teses, idéias e as suas agressões á lógica, que de tão surreais e deploráveis, sei lá, nunca é bom arriscar. Não citarei todos – também pudera, não quero sofrer uma penalidade da inspeção sanitária.

O artigo publicado no pasquim global faz uma denúncia bombástica contra a tentativa de busca da verdade e dos podres do período da Ditadura. Mais do que isso: sua indignação se volta contra o fato daqueles que sobreviveram aos anos de chumbo se manifestarem e tentarem construir a sua visão sobre o Golpe. E, assim, Villa inicia a sessão de espancamento do argumento histórico – chega a arrepiar. Respiremos fundo:

A lembrança dos 50 anos da queda de João Goulart ocupou amplo espaço na imprensa. Nenhum outro acontecimento da história do Brasil foi tão debatido meio século depois do ocorrido. Para um otimista, isto poderia representar um bom sinal. Afinal, o nosso país tem uma estranha característica de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a reflexão e o debate sobre 1964 e o regime militar acabaram sendo dominados justamente por aqueles que conduziram o país à crise da república populista e que negaram os valores democráticos nos anos 1960-1970.

Sem dúvida. O ideal seria que a reflexão fosse conduzida pela trupe formada por Jair Bolsonaro, Brilhante Ustra, Paulo Maluf, Jarbas Passarinho, Delfim Neto, Paulo Malhães, Olavo de Carvalho, Newton Cerqueira e José Marín.

Dessa trupe, ou melhor, desse verdadeiro dream team dos Anos de Chumbo, não faltariam reflexões isentas, auto-críticas, mea culpas. Uma pena já não podermos contar com as prestimosas colaborações de figuras da estirpe de um Sérgio Fleury, Cecil Borer, Felinto Müller, General Médici, Costa e Silva e Pena Boto. A filosofia da História tinha tudo para ser reinventada.

Uma constelação de Democratas puro-sangue, que não pensavam outra coisa que não elevar ao topo mais alto as instituições e valores republicanos. Eram tão fervorosos na defesa dos chamados “valores democráticos nos anos 1960-1970”, que eles acabaram criando e fomentando verdadeiras máquinas de produção de liberdades e bondades para combater a tortura e terror, um sem número de perseguições, cassações, execuções, ocultação de cadáveres, choques, afogamentos e estupros. Por que isso era coisa de Cuba. No Brasil dos militares não, por favor.

Mais adiante, Villa faz mais revelações bombásticas - é, o moço gosta de bombas (hum...). Jango não era um “presidente reformista”, nunca havia sido um “defensor dos valores democráticos” e muito menos um “administrador capaz”. Sim, isso mesmo. Mas como? Baseado em quê? Utilizando dados estatísticos, pesquisas de opinião da época (como a do Ibope), documentos secretos de Estado, cartas...?

Não.

O douto historiador se baseia numa entrevista dada à Playboy por Celso Furtado e numa declaração de Samuel Wainer, de que Jango lhe pedia para passar a sacolinha junto a empreiteiros:

“uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei.” (“Minha razão de viver”, p. 238).

O que, se for verdadeira a declaração de Wainer, prova que os laços do presidente Jango com a burguesia brasileira não eram pequenos. O que joga por terra a tese do pendor comunista do grande latifundiário e ex-protegido de Vargas.  Mas não, Villa prefere lançar o trecho isolado para plantar a semente da dúvida sobre o caráter de João Goulart. Mas o tiro sai pela culatra. Seriam as próprias empreiteiras uma das mais acintosamente beneficiadas pelo Regime militar. Os seus grandes, megalomaníacos e fracassados (e criminosos) empreendimentos o provam. Então Villa, seria o Regime Militar composto de governantes mais “primitivos” e “pobres de caráter” do que Jango? Ou pior: seriam os militares os verdadeiros comunistas?

Conforme avançamos na leitura do escrito de Villa o sentimento de horror e escândalo só aumenta. Pior: é realmente estarrecedor que esse senhor apresente realmente seus textos sob o rótulo de análise histórica.

Porque é realmente inimaginável que nenhum professor de sua época tenha lhe lembrado que a história se estuda e se reconstitui com o maior número de fontes possíveis, com o cotejamento de versões e visões, as mais distintas e divergentes, eis aí o grande sabor do ofício de Heródoto, Varnhagen e Bloch. Mas Villa parece ter se baseado em outros gigantes, não da História, mas da comédia pastelão. Pois sem a menor cerimônia ou pudor ele simplesmente repete, tal como um papagaio (ou seria tucano?) o mesmo blá-bla-blá dos guardiões da Pátria dos valores sagrados da religião e da família que perpetraram a Revolução Redentora de 64.

Mais adiante o douto guardião da Verdadeira Memória (a da Revolução Redentora) desiste de reinventar a roda da metodologia da ciência histórica (ainda bem!) e de maneira preguiçosa, quase manhosa, deixa-se guiar pela fala dos Revolucionários. Respirem fundo e assistam - se puderem - as linhas abaixo:

Não é possível ignorar o caos instalado no país em março de 1964. A quebra da hierarquia militar incentivada pelo presidente da República é sabidamente conhecida. A gravidade da crise econômica e a inépcia governamental em encontrar um caminho que retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O desinteresse de Jango de buscar uma solução negociada para o impasse não pode ser contestado: é fato. O apego às vazias palavras de ordem como um meio de ocultar a incompetência político-administrativa era conhecido.


Caos, quebra de hierarquia, crise econômica, incompetência, demagogia barata, desprezo ao Congresso: ele está se referindo ao governo tucano do professor sociólogo, Privatizando Henrique Cardoso? Não. É de Jango mesmo. Mas o que há de novo aqui? Nada. Todos que derrubaram o governo democraticamente eleito de João Goulart insistem na mesma empulhação. Mas que isso parta de um militar alquebrado, em estágio avançado de demência, no alto do seu amargor reacionário, vá lá; mas ter que ler isso escrito por alguém que se intitula historiador (mesmo que na verdade seja um estoriador), ah, não! Tenha dó de nós sr. Villa!

Você, sofrido leitor, acha que acabou ou acham que o pior já passou? Na, na ni na não. O triste espetáculo desse artigo mal começou. Essa é a triste verdade.

Nem bem piscamos, e ele prossegue no seu deprimente empreendimento.

JK imaginou que Castello Branco era o marechal Lott e que 1964 era a repetição — um pouco mais agudizada — da crise de 1955. Errou feio. Mas não foi o único. Daí a necessidade de separar 1964 do restante do regime militar. Muitos que foram favoráveis à substituição de Jango logo se afastaram quando ficou patente a violação do acordado com a cúpula militar. Associar o apoio ao que se imaginava como um breve interregno militar com os desmandos do regime que durou duas décadas é pura hipocrisia.

Ah, então você quer me dizer que figuras do quilate e da vivência de um Carlos Lacerda e JK foram - vejam só... - enganados tal como dois bebezinhos, mocinhos inocentes, pudicos interioranos, recém-chegados das fazendolas do papá e do vô, e que mal haviam saído das barras da saia da mãezinha? Ainda chorosos por não poder mais comer os bolos de tia Benta? E, vejam, foram marotamente ludibriados por dúzias de milicos sem nenhuma tarimba política? (Por Deus Villa, assim a minha repulsa por você começa a ser física!)

A questão é que Villa imagina demais. E assim parece perder o contato com a realidade. Assim a gente fica na dúvida sobre quem pode ter inspirado o autor nessas elucubrações tão fantasiosas. Ele acaba não diferenciando o plano da realidade histórica e o plano da imaginação surrealista. Ele diz que ninguém da cúpula havia imaginado uma intervenção de longa duração. A impressão que se tem é que os golpistas eram figuras abiloladas, ingênuas, quase infantis. Que nem sabiam o que estavam fazendo...

Tudo estaria perfeito nesta análise inverídica e deplorável sobre as expectativas que os golpistas tinham do Regime, mas Villa se esquece – talvez de propósito – que havia uma linha dura que sempre defendeu a permanência da ditadura por décadas.

São perguntas básicas, que qualquer criança minimamente alfabetizada conseguiria responder em 15 minutos – e isso sem colar....

Mas Villa talvez precise de 21 anos e, mesmo assim, é bem capaz de pedir ajuda aos militares.

E como eu prometi ao meu estômago, eu passo a me reportar às considerações finais do Brilhante (êpa!) contador de estórias.

É claro que todo esse triste espetáculo de humilhação e selvageria contra o argumento histórico, não poderia se encerrar sem antes investir pesado com toda a sua fúria e ressentimento intelectual contra a memória da luta de resistência armada contra o Regime Militar.

E, logo de cara, o ficcionista destemperado se deixa trair:

Ainda no terreno das falácias, a rememoração da luta armada como instrumento de combate e vitória contra o regime foi patética. Nada mais falso. Nenhum daqueles grupos — alguns com duas dúzias de militantes — defendeu em momento algum o regime democrático.


Mas ora, como um grupelho com “duas dúzias de militantes” pôde se constituir numa ameaça à democracia? E, mais grave, como justificar uma repressão tão brutal e sórdida contra grupelhos tão insignificantes?

Além disso, o autor se serve da surrada bravata – de que os grupelhos “eram adeptos da ditadura militar do proletariado” ou de que nenhum deles defendiam as “liberdades” democráticas, para tentar igualá-los aos carniceiros da Oban, do DOI-Codi e dos Esquadrões da Morte.

Nem discuto o gosto do autor em chafurdar o seu argumento no mesmo lodaçal retórico dos grandes defensores do Regime Militar, mas questiono sim a sua extrema preguiça intelectual – prefiro acreditar nisso, juro que prefiro – em explicitar as concepções que informavam o entendimento da esmagadora maioria desses militantes sobre o que seria uma verdadeira democracia, realmente efetiva, não a de fachada liberal, puramente formal, ritualística, processual, que consagra e perpetua desigualdades, discriminações e exclusões – e movida pelo poder do dinheiro e do jogo de influências. E todos aqueles militantes lutavam não só contra a Ditadura, mas também contra essa “Democracia” de festim sim. E nunca esconderam isso. Esconder ficava e ainda fica por parte dos agentes que torturaram, mataram e praticaram o terror, mas até hoje se negam a revelar seus crimes.

Só mesmo um cérebro baldio ou alguém profundamente ressentido pela luta de quem acreditava em outra democracia (que é o caso do Sr. Villa) para classificar tais militantes da luta armada de “irmãos xipófagos” de ditadores, carniceiros e torturadores do Regime Militar. É como igualar os membros da Resistência Francesa às figuras mais asquerosas das SS hitleristas, os Partizans iugoslavos aos beleguins da Gestappo, e, os heróis do Gueto de Varsóvia aos carrascos que serviam nos campos de concentração nazista. Francamente rapaz.

E ainda diz ele, o torturador da integridade intelectual:

Os extremos tinham o mesmo desprezo pelo voto popular. Quando ouviam falar em democracia, tinham vontade de sacar os revólveres ou acionar os aparelhos de tortura.


Na verdade, quando leio um artigo como o deste professor, a vontade que tenho é de puxar a corda da descarga do meu vaso sanitário. Mas seria poluir de maneira criminosa a praia de minha cidade.






Leonardo Soares dos Santos é professor de História da UFF.



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