sexta-feira, 9 de novembro de 2012

De Serra a $erra



Mas por qual razão esse homem mudou tanto?






José Serra, natural de São Paulo capital. Criado desde a mais tenra idade na região da Mooca, assim como o Bixiga, um reduto italiano na cidade. Desde jovem, trabalhava com o pai verdureiro na feira. Carregando e empilhando caixas e caixas de nabo, mandioca, pepino, banana e melão. A feira nos dias que Zezinho trabalhava devia ser um alvoroço só. FHC jura que ele sempre fora feio. A cara do Fester. Pobre daquela senhorinha que se deparava com ele na feira.

Mas Zezinho cresceu. Com muito sacrifício completou seus estudos. E desde sempre, com os olhos esbugalhados que Exú lhe deu, já aprontava, agitava, mobilizava, organizava a rapaziada nos grêmios de antanho. Ainda jovem, só pensava naquilo: organizar a massa em prol de uma vida melhor. Fosse na escola, em sua rua, nas arquibancadas do Palestra Itália ou até em sua igreja.

Aliás, quando iniciou na vida estudantil universitária, como estudante de engenharia civil da USP buscou aliar militância e fé (Xiii....). Como católico de boa cepa, mas engajado nas coisas do mundo, foi um dos articuladores e fundadores da antiga Ação Popular (AP). Corrente da mesma igreja bastante engajada nas questões sociais e que namorava um certo socialismo humanista. Tinha também Betinho como companheiro e se inspirava em figuras como Paulo Freire.

Serra buscou se inserir também na UNE, tornando-se seu presidente poucos meses antes do golpe. Ali tinha um discurso dos mais radicais – nem digo para a época, mas muito mais para os tempos insossos de hoje -, propugnando pelo aprofundamento das reformas de base, em especial da reforma agrária. Era adepto ferrenho da ampliação dos fundamentos do modelo econômico de forte matiz cepalino. E que foi consagrado pelo nome de “nacional-desenvolvimentismo”. Serra defendia com unhas e dentes as propostas de Celso Furtado, de total independência do capital e mercado nacionais, baseando-se para isso na tese industrialista, perfumada de muita ingenuidade, mas de efeitos políticos e simbólicos tremendos num cenário ainda muito influenciado pelo espectro getulista.


 Com o Golpe de 64, Serra teve que se exilar – veja que pobre coitado – em Paris! Voltaria poucos anos depois ao Brasil. Ficaria no Rio, muito pouco tempo, na casa de Arthur da Távola (pseudônimo de Paulo Alberto de Barros, um dos donos da Estácio de Sá). E de lá voaria para o Chile. Onde conheceria Monica. Psicóloga. Pois não é que essa mulher conseguiu se apaixonar pelo Zezinho da Mooca. Pior: teve peito para se casar com ele (mas que diabos de paixão cega é essa meu Deus do céu?).

Entretanto, fato comum nesses arroubos da juventude, Mônica embarrigou antes da hora. Uma ex-aluna disse que ela disse que teve que abortar. Isso mesmo: a mulher de Serra teria abortado. Claro que isso não é verdade...

Não obstante, Serra se concentrava numa importante frente: denunciava do Chile as torturas e mortes perpetradas pela ditadura militar no Brasil. E ainda encontrava tempo para fazer seu mestrado em Economia na Universidade do Chile – ainda pública apesar de Pinochet. Foram tempos difíceis. Muitos anos longe do Brasil. Serra ainda passaria um tempo nos EUA. Com a redemocratização anunciada pelos movimentos populares desde o final da década de 70, veio então a chance de construir um novo Brasil. Mas como isso poderia se suceder? Pensava Serra. O que havia ainda de puro, inocente, de autêntico naquele menino folgazão dos tempos da UNE? O que de radical ainda temperava o sangue ítalo-paulista desse jovem palmeirense decidido desde sempre a mudar os destinos de seu país, embalado pela fábula nacional-desenvolvimentista, mas com vislumbres de engrandecimento social?

Serra sabia que teria que ter paciência. A volta da democracia não bastava. Havia ainda um longo caminho a ser percorrido. Mas paciência para lidar com as derrotas ele tinha de sobra. Não esqueçamos que ele era e ainda é palmeirense. E passou anos esperando no Chile. Para o azar de Monica...


Ainda na primeira metade da década de 80 aderiu ao PMDB.  Mas poucos anos depois o núcleo duro paulista debandaria desse grande balaio de gato para fundar o PSDB. Partido que desde sempre se mostrou ardoroso defensor da democracia, mas que sempre lamentou o fato dela ser obrigada a tolerar a participação de um agente chamado “povo brasileiro”. “Onde está o povo?” - indagava com a costumeira malícia FHC na década de 70. Concepção aliás que era alvo de vários embates no núcleo que fundaria o partido social-democrata(sic). Num depoimento anos depois, FHC revelava que não fazia muita questão da implantação do voto direto para presidente, pelo fato do povo ainda “não estar preparado para exercer esse direito”. O “despreparo” adviria do endêmico analfabetismo, de anos de ditadura e do legado nefasto do período populista (que, na sua ótica, teria promovido mais alienação do que politização). Daí a decisão peremptória desse núcleo em rechaçar a fusão com o PT. Não à toa, o próprio presidente-sociólogo justificaria tal atitude recorrendo a uma concepção que sempre fora capital para os tucanos: “Não tinha como. O PSDB é um partido de intelectuais”.

Mas a despeito das divergências doutrinárias, Serra ia cavando o seu espaço. Foi assessor do governador Franco Montoro e dava assim o primeiro grande passo para firmar a sua posição no cenário paulista. Até que vem a década de 90. Um tempo de triunfo e glória incomparáveis na história do tucanato paulista. No mesmo ano de 94 eles conquistam o Palácio do Planalto e o Palácio dos Bandeirantes. Festa total. FHC e Covas adotam reformas e mais reformas visando a desregulamentar a economia, diminuir o Estado, privatizando até a medula o serviço público, arrochando o funcionalismo e desmontando o parque industrial. E é o momento que os tucanos começam a articular as alianças mais inusitadas, mais tresloucadas. “Esqueçam o que eu escrevi”, já dizia na defensiva FHC. “Nesse país é impossível governar sem o apoio dessa gente [das oligarquias]”, corroborava José de Souza Martins, o sociólogo apaixonadamente tucano mais imparcial que já se viu (o MST que o diga). O arco de pactos canhestros ia de ACM, passando por Sarney, Marco Maciel, Inocêncio Oliveira até Maluf. Tudo pelo poder. Bem antes do PT, o PSDB mostrava o quanto as alianças no Brasil beiram a pornografia.




São os anos da desertificação neoliberal promovida pelo PSDB. Mas faltava algo nessa festança do capital financeiro. Faltava tomar o poder numa área chave da geopolítica nacional. Faltava abocanhar a maior cidade do país, a terra de Adoniran Barbosa, do SBT, onde um chopp é pedido como “um chopis”, o cemitério do Samba – segundo Vinícius de Moraes, o Poetinha. Estamos falando de São Paulo.

E quis Deus que em 1996 o PSDB lançasse justamente como candidato à Prefeitura o tucano mais crítico aos rumos da política econômica implementada pelo partido. Sim, Serra era bastante resistente ao ardor privatista que havia impregnado as hostes tucanas. E essa coragem, essa firmeza em manter uma posição tão controversa num contexto onde tudo dava certo com o PSDB, lhe renderia algumas inimizades dentro do próprio partido. Tanto que Serra era taxado de “estatista fora de época”. Conta-se que isso era um dos motivos de FHC ter como um dos seus principais prazeres falar mal do colega (sem cabelo) de partido.

Mas, como dizíamos, veio a eleição de 1996. E Serra conseguiu perder para o fantoche de Maluf, o Pita. Aí não. Assim não dá, assim não pode. Deve ter debochado FHC. Morrendo de rir com a derrota de Serra. Foi a gota d’água. Ele entendeu que deveria mudar para ganhar. Para chegar ao Pudê.  Mas ninguém poderia imaginar que ele mudasse tanto, tão radicalmente no sentido de um conservadorismo verdadeiramente bizarro.

A virada de Serra, e sua obstinação em manter a hegemonia tucana no estado de São Paulo e na capital, o fez se curvar aos ditames da orgia privatista de seu partido. De uma hora para outra, resolveu tentar fazer em São Paulo o que Pinochet fez ao longo de duas décadas no Chile: privatizar tudo. Até o ar poluído da cidade se possível.

Mas a ambição desmedida pela cadeira do Palácio do Planalto o fez ir além. Serra acabou caindo no colo de setores os mais retrógrados e reacionários do espectro político do país. O leque é amplo: monarquistas, TFP, neointegralistas, “viúvas” da Ditadura Militar (Serra chegou ao ponto de numa palestra no Clube Militar em 2010 dizer que a “Revolução” de 64 foi providencial para barrar a implantação de uma “República Sindical”), Opus Dei e "verdes" (do PV). Não satisfeito, Serra tomou como bedel o Pastor Silas Malafaia, o que diz que Deus criou “Macho e fêmea”. Passou a misturar fé e política. Tratar eleitores como rebanho. Adotou uma postura de criminalização do aborto (mulher que comete aborto tem que ir para a cadeia) assim como a dos usuários de maconha. Direitos humanos, políticas públicas passaram a ser vistas e tratadas pelo viés da criminalização. Da marginalização. Ele não discute mais projetos. Seu discurso se resume a declarações de profissão de fé sobre valores e concepções religiosas e moralistas.

Serra, o que mais falta você fazer para destruir com sua história?

E agora esse novo fracasso. Mais uma coça para o PT. Uma surra pra ninguém botar defeito. Perdendo para um candidato inventado por Lula. Após cada derrota, há o risco de Serra mudar (sempre para pior). O que ele vai inventar de defender agora? O quê? Como diria uma certa namoradinha (dos pecuaristas): confesso, tenho medo. Muito medo diante de tanta indecisão, de tanta falta de rumo e prumo de um sujeito que perde e está perdido. Perdido para si mesmo. Que perdeu sua própria história.

E agora, José?
José, pra onde?




Leonardo Soares, historiador e professô. E tem medo. Medo da reeleição da Patrícia Amorim como presidAnta do Flamengo.

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